INADIMPLÊNCIA TRIBUTÁRIA: CRIME OU MERA DÍVIDA

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Crime ou Mera Dívida

1. INTRODUÇÃO

Atualmente há uma forte tendência de responsabilizar criminalmente o inadimplemento tributário, talvez no intuito de facilitar a entrada de recursos aos cofres públicos, contudo, este tipo de intimidação não faz bem ao Estado Democrático de Direito, nem deve ser considerado a melhor técnica para lidar com a inadimplência tributária, que já detém de outros modos já consagrados para alcançar resultados satisfatórios, como o direito Tributário.

Nesse contexto, atualmente a mera inadimplência do empresário em relação ao ICMS, por meio de interpretação extensiva, está tipificando a conduta prevista no artigo 2º, II, da Lei nº. 8.137/90, isto é, apropriação indébita tributária.

Dessa forma, trataremos no presente estudo sobre a utilização do direito penal como forma subsidiária para satisfazer o crédito tributário.

2. DOS PRINCÍPIOS LEGITIMADORES DO DIREITO PENAL

Para entendermos melhor os motivos para o direito penal não ser aplicado de forma ampla e discricionária na seara tributária, precisamos analisar pelo menos três princípios que legitimam sua existência, sem prejuízo dos demais, mas estes ao nosso ver, já podem levar o leitor a entender melhor o cerne da questão apresentada, sendo eles os princípios da legalidade, da subsidiariedade e da fragmentariedade.

2.1. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio da legalidade é sem dúvidas um dos mais importantes pilares do direito penal e encontra previsão expressa no artigo 1º, do Código Penal e no artigo 5º, XXXIX, da CRFB/88.

Dele podemos entender que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Podemos ainda desdobrar a legalidade em quatro princípios, que dão eficácia e atingem seu objetivo: 1) nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; 2) nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; 3) nullum crimen, nulla poena sine lege stricta e 4) nullum crimen, nulla poena sine lege certa. Para os fins do presente estudo, vamos nos concentrar no 2º, 3º e 4º subprincípios.

Lege scripta (reserva legal): o brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege scripta, nos ensina que os costumes mesmo que benéficos ao réu e aceitos socialmente, não podem criar nem extinguir crimes e penas, somente a lei escrita, por exemplo, apesar do jogo do bicho ser prática socialmente aceita, continua sendo contravenção penal.

Lege stricta (proibição da analogia): esta concepção, nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, proíbe a analogia em malam partem, isto é, para prejudicar o réu, o contrário é permitido, ou seja, para beneficiar o réu. Aqui precisamos expressar que a analogia não é uma forma de interpretação, mas sim, de integração da norma em caso de lacuna.

O que é muito diferente da interpretação analógica e interpretação extensiva, a primeira, quando a própria lei se utiliza de uma forma genérica e a exemplifica, assim, outras hipóteses, que se assemelhem com os exemplos apresentados se encachariam perfeitamente no termo genérico, já a interpretação extensiva, é o caso em que o legislador falou menos do que queria falar, e o intérprete, no caso, o juiz interpretaria de forma a estender o que o legislador falou a menos.

Neste último caso, a interpretação extensiva jamais, poderia ser utilizada de forma a prejudicar o réu ou acusado, pois fugiria da concepção de reserva legal, pois ampliaria os limites do Direito Penal positivado.

Lege certa (taxatividade): esta última concepção é resumida no brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege certa, também conhecido como princípio da taxatividade ou da determinação taxativa, que proíbe incriminações vagas e indeterminadas, tipos que não sejam claros ou precisos.

2.2. PRINCÍPIO DA FRAGMENTARIEDADE

O princípio da fragmentariedade significa que o direito penal não protege, nem deve proteger, qualquer lesão a qualquer bem jurídico, mas somente as lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes.

Pela sua importância e gravidade, não pode o direito penal tutelar alguns bens jurídicos menos relevantes, como o caso de inadimplemento de uma dívida, por exemplo, apesar de causar uma lesão ao patrimônio de alguém, trata-se de um problema civil e não penal.

2.3. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE OU DA NECESSIDADE

O princípio da subsidiariedade vai mais além, do que o princípio da fragmentariedade, aqui o bem jurídico é importante e tutelado pelo direito penal, mas como ultima ratio, deve ser analisado se há possibilidade de o problema ser resolvido por outra área do direito, menos lesiva para o cidadão e tão eficiente ou mais que o direito penal.

Nessa análise e escolha da área do direito que deve ser utilizada para a solução do problema lançamos mão do princípio da proporcionalidade, subdividido em seus critérios necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

Portanto, outra área do direito como cível, tributário ou administrativo, podem trazer a mesma solução, contudo de forma menos lesiva ao cidadão.

3. JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE SOBRE O ART. 2º, II, DA LEI Nº. 8.137/90

O artigo 2º, inciso II, da Lei nº. 8.137/90 dita o seguinte:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: 

II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; (grifo nosso).

Aqui toda a discussão doutrinária e jurisprudencial gira em entorno de saber o real significado da expressão descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação.

No Habeas Corpus nº. 399.109 – SC, o Ministro Relator  ROGERIO SCHIETTI CRUZ, tem o entendimento de que a falta de pagamento do ICMS pelo contribuinte, não constitui apenas mero inadimplemento fiscal, mas crime de apropriação indébita tributária.

 Neste julgado, o E. Ministro constrói uma narrativa de que o empresário devedor do tributo na verdade não é o contribuinte, mas sim o responsável tributário, como se o contribuinte fosse na verdade o consumidor final, pagando este o ICMS.

 E que o empresário, como responsável tributário, deveria recolher aos cofres públicos o tributo já pago por outrem.

O Ministro vá além, pois dá interpretação extensiva in malam partem ao termo “cobrado”, o interpretando com significado repassado, assim, o simples fato de o empresário repassar no custo da mercadoria o ICMS para o consumidor final, já configuraria o crime de apropriação indébita tributária.

Por outro lado, no mesmo julgado a E. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, diverge do relator, se posicionando que o empresário não é o responsável tributário, mas sim o contribuinte, sujeito passivo direto, o qual tem a obrigação de recolher o tributo.

A ministra entende que o empresário não só repassa ao consumidor final no custo do produto o ICMS, que por lei deve ser destacado na nota fiscal, mas apesar de não constar nesta, também é repassado o IR, Contribuição Social, aluguel entre outras despesas do negócio. E jamais, o empresário pode ser denunciado por apropriação indébita, por declarar, mas não recolher o Imposto de Renda e as Contribuições Sociais, ou até mesmo, o aluguel ao locador.

4. CONCLUSÃO

Pelo presente estudo percebemos uma tendência na utilização ampla e discricionária do direito penal, para alcançar fins que outras áreas do direito já estariam capacitadas.

No caso em comento, data máxima vênia discordamos veementemente do E. Ministro relator, isto pois, distorce o conceito tributário de contribuinte e responsável tributário, apenas com a finalidade de responsabilizar criminalmente o empresário, na intenção de facilitar a entrada de recursos nos cofres públicos, tendo em vista que o pagamento do tributo e acessórios, em sua integralidade extingue a punibilidade. Podemos observar a clara faceta de intimidação do empresário brasileiro, já tão sofrido com tantos percalços.

O Ministro vai além, realiza interpretação extensiva in malam partem no intuito de dar interpretação ao termo “cobrado”, com se o legislador quisesse dizer “repassado”.

Ora, tal atitude fere o princípio da legalidade em seu desdobramento Lege stricta (proibição da analogia), tendo em vista, que a interpretação extensiva prejudica sobremaneira o acusado.

Também, devemos dizer que fere o princípio da legalidade na sua concepção “Lege certa”, tendo em vista, a taxatividade da lei, que proíbe incriminações vagas e indeterminadas, tipos que não sejam claros ou precisos. Ora, se presente problema formal no tipo penal, seria melhor a sua não aplicação, do que o Poder Judiciário tentar aplicá-la, se tornando o legislador, sem qualquer respaldo democrático, tendo em vista que não foi eleito.

Por isso, concordamos com o posicionamento divergente da Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, que respeita o princípio da legalidade em todas as suas vertentes, indo em mesmo sentido que o princípio da Fragmentariedade e Subsidiariedade, tendo em vista que há outros meios bem mais capacitados e preparados para a cobrança do tributo, isto é, o próprio direito tributário, já guarnecido de todas as ferramentas para garantir o adimplemento tributário, tanto do ponto de vista legal, em relação a Execução Fiscal, como também por meio de órgãos competentes como a PGFN, não sendo preciso lançar mãos do Direito Penal e do Ministério Público, que já está abarrotado das mais diversas discussões.

Sobre o Autor

Fernando O. Fernandes

Sempre adorei o estudo do direito como um todo e hoje me dedico ao direito penal e tributário, como um eterno estudante da área.
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